Cara Leitora / Caro Leitor,
Espero encontrar-te bem.
Três meses passaram desde a minha última carta. Tanto aconteceu a nível pessoal e profissional… Não te preocupes, não vou maçar-te com pormenores de pequenas vitórias nem de grandes dores. Hoje gostaria de partilhar contigo um pensamento que me acompanhou em cada um destes 90 dias:
Devemos às crianças (e aos jovens) um mundo melhor!
Enquanto profissional da cultura e da educação, ao longo destes três meses, tenho-me questionado muito acerca da minha responsabilidade e tenho assumido ainda com mais fervor a missão (partilhada com tantos, bem sei, felizmente) de ajudar a preservar a Humanidade. Parece-te exagerado e pomposo que uma mediadora de leitura se arme em defensora da paz, do bem comum, de um mundo onde os direitos de todos são respeitados e defendidos?
Deixa que te conte acerca de uma mulher. Poucos meses após o final da Segunda Guerra Mundial, esta jornalista judia, forçada a exilar-se com os filhos em Londres, foi chamada pelos americanos para auxiliar na reconstrução da Alemanha, no que à educação e cultura dizia respeito. Ao ver os escombras e as crianças alemãs órfãs, de olhar apagado, que deambulavam descalças, em busca de comida, alienadas, esvaziadas pelos horrores a que tinham assistido, decidiu que era por elas que teriam que começar. Havia que devolver a infância a estas crianças. As suas palavras1 foram:
«Deixem-nos começar pelas crianças para conseguirmos endireitar este mundo às avessas. As crianças mostrarão o caminho aos adultos.»
Comida, roupa, calçado, medicamentos e também livros, os melhores livros para a infância do mundo inteiro. Os livros como pontes entre as pessoas. Não como fuga ou isolamento, mas como abertura ao mundo, à sua beleza, riqueza e complexidade, como instrumento extraordinário para indagar o mundo e inventar novos futuros. Assim, escreveu cartas a várias embaixadas e pediu a cada nação que enviasse os seus melhores livros infantis e também desenhos de crianças. Chegaram 4000 livros de 20 países. A exposição foi inaugurada em julho de 1946, em Munique, e esteve depois patente noutras cidades alemãs, para que o maior número possível de crianças a pudesse visitar.
Esta mulher chamava-se Jella Lepman e foi a fundadora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, inaugurada em 1949, com o acervo dessa exposição, e que acolhe ainda hoje os melhores livros para a infância e juventude de todo o mundo: mais de 650.000, em 250 línguas. Desde o início, Jella Lepman acreditou no poder da literatura e da ilustração, da arte, em suma, como elementos transformadores e potenciadores do desenvolvimento humano. E, acima de tudo, confiou na inteligência e na autonomia das crianças e jovens. Estes tinham livre acesso às estantes da biblioteca (algo inovador na Alemanha da época, tendo suscitado muitas críticas), podiam escolher sem condicionamentos os livros que queriam ler, participavam em horas do conto, aulas de línguas estrangeiras, laboratórios de pintura, aulas de teatro, sessões de cinema, bem como em clubes de leitura, que eram verdadeiros grupos de discussão, e eram eles que escreviam as recensões dos livros e as difundiam por vezes através de um programa de rádio. A biblioteca funcionou mesmo como uma delegação das Nações Unidas (das Crianças). Em 1956 passou até a dispôr de uma carrinha itinerante, levando as suas coleções além-fronteiras.
Foi também cofundadora, em 1953, do IBBY (International Board on Books for Young People), atualmente com 85 secções nacionais, entre as quais a portuguesa, cujos principais objetivos são promover o entendimento internacional através dos livros para a infância e juventude, bem como garantir o acesso das crianças de todo o mundo a livros de grande qualidade literária e artística.
O legado de Jella Lepman perdura, mais vivo e necessário do que nunca. Não esquecerei as lágrimas de Basarat Midat Kazim, a Presidente do IBBY Internacional, no primeiro dia da Feira de Bolonha, ao mostrar as bibliotecas construídas pelo Ibby em Gaza e agora destruídas pelos bombardeamentos, apelando à denúncia e à união de todos para a sua reconstrução.
Receberás esta carta a 1 de junho, Dia da Criança. Em Portugal, não esquecemos as crianças da Palestina e, guiados pelo poeta João Pedro Mésseder e pela ilustradora e editora Ana Biscaia (que assina a ilustração abaixo), gritamos Não!, denunciando e repudiando o massacre destas infâncias, do presente e do futuro do mundo, porque estas crianças também são nossas.
A minha responsabilidade? Agora e sempre, não ser cúmplice pelo silêncio! Lutar por um mundo livre, justo e mais humano, como me ensinaram os meus avós e os meus pais, os meus mestres e cada uma das crianças e jovens que encontro. Fazê-lo, usando a minha voz pública, conversando com (e, sobretudo, escutando) crianças, jovens e adultos, olhos nos olhos, colocando o dedo em muitas feridas, mas também mediando leituras, oferecendo a beleza das palavras, das obras, criadas aqui e noutros lugares e tempos, unindo corações e convidando a ler, a pensar e a RESISTIR.
Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS
Um abraço,
Paula Cusati
No seu livro autobiográfico Die Kinderbuchbrücke (tradução literal: A ponte de livros para a infância), de 1964 e ainda inédito em Portugal. Li-o na edição italiana intitulada Un ponte di libri, editada pela editora Sinnos, em 2018.
Uma carta que nos faz reflectir e agir.
Uma linha de trabalho que não podemos negligenciar!